Eu nem sempre me sinto no direito de falar sobre racismo porque eu sei que a minha experiência não reflete a realidade do racismo. Mas pra mim estava na hora. Alguns comportamentos racistas estão tão enraizados que as pessoas nem percebem o que estão fazendo. Algumas nem se consideram racistas já que não estão diretamente atacando outros. Mas essas nuances são tão tóxicas quanto o racismo explícito e acima de tudo, permitem que as pessoas pensem que não são racistas enquanto perpetuando esteriótipos racistas. Por isso eu decidi mostrar como é estar do outro lado. Talvez isso traga um pouco de perspectiva e se só uma pessoa mudar seu comportamento, eu sei que eu fiz alguma coisa pra quebrar o ciclo.
Eu cresci numa cidade pequena no Brasil onde todo mundo conhecia todo mundo. E isso funcionou em meu favor. Já que as pessoas conheciam a minha família, ninguém ia me dizer nada diretamente. Além disso, meu pai sempre falou em inglês comigo e com isso as pessoas nos vias de uma forma diferente.
Meus pais são professores universitários, e ter comida na mesa, um teto e saber que eu ia estudar sempre foram certezas no meu mundo. Educação ajudou meus pais a se desvencilharem da vida que eles deveriam ter e construir a vida que eles queriam. Então dá pra imaginar quanto eles valorizam isso. Eles me mandaram para as melhores escolas que eles puderam pagar pra eu ir pra uma universidade pública. E como a aluna dedicada que eu sempre fui, eu acabei indo para uma das 10 melhores universidades do Brasil. Eu e formei entre os melhores da turma, um semestre antes e 2 meses depois de formada eu fui pra Europa fazer mestrado.
Eu tive que abrir muitos caminhos. Eu me mudei para lugares predominantemente brancos pra estudar. Eu fui a primeira aluna negra do curso de design gráfico e a única aluna negra no meu mestrado. Mas eu nunca deixei que isso me definisse. Meu foco era fazer o melhor possível em tudo. Por isso eu não era conhecida com a menina preta, mas por ser uma das melhores alunas. E isso ajudou a conquistar respeito. E eu tirei proveito disso. Eu concentrei meus esforços e me formei cedo e com honras. Eu aprendi quatro línguas pra ter mais oportunidades. Eu sabia que com trabalho duro e dedicação eu podia ir pra qualquer lugar que eu quisesse.
Por que eu passei a maior parte da minha vida focando em construir o futuro que eu queria, o racismo passou despercebido. Por anos eu não percebi que vários comentários e suposições eram racistas. Coisas pequenas. Como ser perguntada se eu trabalhava numa loja onde todos os funcionários claramente estavam usando uniforme. Ser perguntada se eu estava junto com um homem negro só por nós estávamos na mesma loja. Ou ter uma vendedora me seguindo numa loja só por eu ser negra e isso era um sinal de alerta pra ela.
Mas essa é só uma parte do problema. Apesar do Brasil ser o país do mundo com a maior população negra fora da África, representatividade ainda é um problema. Quando eu cresci, eu quase não via atores negros, políticos, cientistas ou modelos negros nas revistas. Por anos, as únicas bonecas negras que eu tinha vieram de uma viagem do meu pai aos Estados Unidos. Fora da minha família, ninguém que eu tinha como inspiração parecia comigo.
E isso se traduziu em outros aspectos da minha vida. Aos 18 anos eu não tinha idea de como era meu cabelo natural. Minha motivação fazer a transição pro meu cabelo natural foi puramente prática: eu estava cansada de perder tempo e dinheiro cuidando do meu cabelo. Até aquele momento eu pensava que as minha únicas opções eram alisar o cabelo ou ter tranças. Eu não tinha ideia do que eu estava fazendo, mas eu decidir seguir em frente. Várias pessoas tentaram me convencer que eu estava errada. Que meu cabelo natural não combinar comigo. Que meu cabelo ia ser feio. Mas assim que eu terminei a transição, a conversa mudou. As pessoas gostavam tanto que ficavam perguntando se eles podiam pegar no meu cabelo. Ainda me choca que em um estado onde 80% da população é negra, ter cabelo natural ainda é visto com tanta estranheza.
Quando eu tinha 20 e poucos anos eu comecei a me interessar mais por moda. E meu estilo tende a ser um pouco exagerado. Eu amo acessórios grandes e chamativos, combinações diferente e claro, sapatos altos. Eu sou muito artística e meu estilo é uma das maneira que eu tenho de me expressar. Mas no final das contas, minha aparência não significa nada pra mim. Mas claramente, significa muito pros outros.
Eu vi várias mulheres agarrando as bolsas quando me viam por perto. Mas assim que elas viam como eu estava vestida, elas relaxavam. Isso aconteceu várias vezes e parte de mim começou a ignorar a situação. Eu sabia o meu valor e eu mantive a minha cabeça erguida. Eu sabia que eu era uma mulher estudada e com um grande futuro pela frente. Eu sabia quem eu era, onde eu queria ir e eu não ia dizer ninguém me dizer o contrário.
Universidade não foi o único lugar onde eu tive que ser pioneira. Eu fui a shows onde eu era a única negra. Eu trabalhei em lugares onde eu era a única pessoa negra. Mas eu decidi usar isso como oportunidade pra derrubar barreiras.
Eu tinha uma vida razoável no Brazil. Melhor que a média da população, mas eu não conseguia viver um lugar onde o racismo, a corrupção e a desigualdade são parte da cultura e isso nunca vai mudar. Por isso eu deixei tudo pra trás e resolvi começar do zero no Canadá. Hoje eu sou uma mulher, negra e imigrante. O simples fato de existir já é uma batalha. Mas eu luto mostrando pro mundo tudo o que eu consigo conquistar. Eu sempre me pergunto como eu posso ter impacto na comunidade? Como eu posso me tornar um exemplo pra meninas negras? O que eu posso fazer pra lutar contra o preconceito? E isso me mantém seguindo em frente.
Muita gente não entende porque eu trabalho tanto. Meu pai, um homem negro que conseguiu tudo graças a muito trabalho, teve várias conversas comigo quando eu era criança. Mas eu acredito que a conversa que o Eli Pope teve com a Olivia Pope em Scandal resume tudo: “Você deve ser duas vezes melhor que eles para conseguir metade do que eles têm.”